UMA ARREDOUÇA

Paulo Passos


Psicólogo Clínico (Braga, Portugal)


2020



É uma arredouça...

Crianças, famílias, supermercados (ou himperes. Himper, no singular) e demais...


(Entrar num himper é uma odisseia de aflições e contrariedades.

Assim como é, em hipótese (confirmada), um passeio alegre, uma intenção, um programa de entretenimento, um desejo, um gregarismo de reforço familiar, uma demonstração de existência e de exemplo...!).


Chega sempre cheia, a carrinha de caixa aberta.

Perfeito arraial de movimentos, com-posturas de última hora, retoques para selfies, mesmo antes da porta automática do himper.

Máscaras colocadas (condição de admissão do destino), adolescentes de braços dados, pequenos aos reboliços, já com o ranho a espreitar, e lá vai a montra num orgulho que se vislumbra em cores e brilho, para admiração e inveja dos demais concorrentes.


Retira-se um carrinho de compras... e lá segue a excursão, para uma inovadora tarde de himper.


A gritaria de birra vem de várias frentes.

A guincharia de desespero, irritação e desconforto (dos mais pequenos, ainda de berço) vem de alguns pontos estratégicos, geralmente dos colos de um dos familiares, que os sacodem (intento de embalar), mas com o olho para uma novidade de prateleira.


Os pais, num orgulho transbordante (mas que desconhecem) exibem, com um sorriso, as monas apertadas das filhas bebés (que se esperneiam em incómodo) pelas fitinhas de prender o cabelo inexistente, com o lacinho de lado, mas também pelo barulho de fundo; das músicas; das vozes das funcionárias a darem instruções de vendas promocionais; do ar condicionado; das luzes; dos cheiros oriundos dos diferentes produtos das diversas prateleiras; da confusão do ambiente; da toxicidade psicológica, da infeliz existência...!


Guinchos, gritos, birras, convulsões, esperneamentos, chapadas e chapadões, maus feitios e más educações... surgem logo desde o parque de estacionamento, em contiguidade do que é arrastado de casa ou do primeiro dia de escola (também bem apetrechada).

.

Não há andor (previne-se)... mas vai tudo em procissão familiar, em excursão ao ansiado Imper (hiper), numa tarde domingueira.


Vai a pré-adolescente, orgulhosa e lampeira, de bolsinha prateada à tiracolo.


Vai o pequeno que já berra antes de entrar, ou pelo nervosismo do entusiasmo ou pela antecipação dos chapadões, ralhetes e safanões que lhe cairão, de sorte, no lombo.


Vai a velha (mais o andarilho, a mala e o casaquinho de malha fina pendurado no braço, para o caso do arrefecimento crepuscular).


Vai o avô (contrariado) trajado com roupa escolhida de véspera, de trusses salientes pelo exigente amparo da bengala, em alívio ao encurvado das mazelas da longa vida, materializado nas constantes dores das costas.


Vai a mãe, escarranchada no carrinho, de má cara, à frente da comitiva , num constante ralho e comandando as lides. 


Vai o pai, já meio atravessado pelo vinho (se a excursão for depois do farto e gordo almoço familiar), mas recatado, impondo o seu pálido respeito para com a trupe de quem é chefe de família, bem à moda da bigodaça que se obriga a viril macheza na Tugália...!


Vão as duas sobrinhas maternas, adolescentes e já aperaltadas como deve ser para a ocasião: sandálias de plataforma exagerada, iguais para ambas, que as faz movimentarem-se mais torcidas do que o desejado, contudo, sustentando a motivação de que tudo tem o seu preço, o que justifica o sofrimento.


Vai ainda um primo (afastado), quase na maioridade, que arrasta a asa a uma das adolescentes, por quem é beliscado e agredido, entre gargalhadas e decididas palmadas, como manda o respeito e a demonstração de pureza de ideias e de certa vergonha, na sua versão feminina em desejada e procurada ofensa, num sorriso que espelha o entusiasmo namorisqueiro, de uma tarde bem passada.


O barulho da presença familiar; os chinelos (dos dourados aos pardos); os guinchos e os gritos das criaturas...  arruínam paciências (impondo um doméstico estatuto), enquanto penetram pelos ouvidos mais ou menos delicados, de quem precisa de se aviar.


Ei-lo: o paralisante temor reverencial que comanda a existência da tugada, numa sua versão actualizada. 


The best of...!



Comentários

  1. Fantástico relato. Faz-me recordar Gabriel Garcia Marques nas suas narrativas descritivas que nos transportam ao local como se um documentário se tratasse. Por outro lado, esta narrativa mordaz, humorística e picante também me traz a memória os relatos de José Vilhena.
    Em resumo... muito bom Vasco. Gosto muito.

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  2. YELLOWWWWWW. Great yellow. Bom fds. Abraço.

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