FAMÍLIA OU DOMESTICAÇÃO DA INFÂNCIA?


 

FAMÍLIA OU DOMESTICAÇÃO DA INFÂNCIA?


Paulo Passos


Psicólogo Clínico (Braga, Portugal)


2020






    Crianças tão domáveis quanto o poder da doença da resignação possa exigir.

    Crianças tão indomáveis quanto o são e prazeroso feitio (de corpo e de alma) determine.

 

    A subjugação aos dogmatismos relacionais e educacionais pré-definidos, num arcaísmo acrítico, são mecanismos ditatoriais sustentados pela crença e valorização de um banal “bem-feitorismo” (que começa em casa, continua na escola e segue nos meios sociais próximos e alargados…), registado na sua hábil tacanhez de intenções e de competências, enquadrado num cenário impositivo e de intento castrador…! 

 

    A identificação de práticas de relação (no manifesto ou no determinismo do latente), onde a criança é elemento interveniente, está o motivo do presente texto (*), na sua vertente de inventariação e sistematização dos discursos e das posturas psicológicas que sustentam as variedades dessas (valorizadas) práticas.

A análise de conteúdo dos registos de observação, bem como a interpretação dos significados, atribuídos às modalidades de valorização histórica, social, antropológica e cultural, estão na base dos constructos dos padrões comunicacionais, que se identificaram e deram motivo ao presente texto.

Foram inventariadas expressões, verbalizações de pareceres e relatos de relação (directas ou por tradução clínica), as posturas inerentes às práticas relacionais, bem como os mecanismos de condicionamento, no contexto do cumprimento dos processos (dogmáticos) de influência interactiva.

A estruturação do texto enquadra-se na divisão e saliência (do que inventariado e sistematizado), no quadro das práticas sócio-familiares de interacção, tendo a criança como um dos intervenientes, organizando-se nos seguintes desígnios:

 

    Desígnio 1: O Chefe-de Família e a Dona-de-Casa (Contextos domésticos e vulgares de relacionamentos. Tipo de relações com elevado cariz condicionante e patologizante).

    - Desígnio 2: O Pai e a Mãe; o Pai ou a Mãe; os Pais ou as Mães (Clarificação de intenções equilibradas de promoção relacional e existencial).

    - Desígnio 3: Os Outros (Identificação de posicionamentos de intervenção, de responsabilidade institucional e de cidadania, no sentido dos seus intentos sanitários de abrangência ambiental, comunitária, grupal, familiar e individual).

 

    Justificativamente, apontam-se determinismos ligados à elevada incidência de sintomatologia de desajuste na infância (considerando e incluindo os sinais e sintomas de natureza ansiosa e/ou depressiva).

Salientam-se, sobretudo e etiopatogenicamente, os determinismos históricos, sócio-culturais e familiares, onde a significância de valores (ainda que adversos ao desenvolvimento justo e livre) são incidentes e enraizados nos contextos de validação clínica/disfuncional/patológica.

No concernente à cidadania e às estratégias interventivas, sugere-se que o recurso a práticas sustentadas (e fundamentadas nos devidos apriorismos e rigores de direito) de continuidade e promotoras da implicação de realidades ambientais, sejam as de eleição, considerando a excelência de oportunidades na adesão em âmbito da saúde (ambiental, comunitária, grupal/familiar e individual) desprovida da função de condicionamento ou de domesticação.

 

    O Chefe-de Família e a Dona-de-Casa:

Neste modelo inter-activo, e no que concerne à criança, não são cumpridas as necessidades de satisfação/gratificação da liberdade e do direito existencial, na sua esfera promotora de integração, adaptação e de participação implicada e construtiva.

Neste registo, recai sobre a criança a exigência de funcionalidade com caracterizações (de imposição) de natureza histórica, institucional, política, económica, social, cultural e familiar, em detrimento da existência centrada na realidade (actualizada e actualizante) da infância.

Estas práticas operam e estão sustentadas (entre outras responsabilidades) em posições feudais na paisagem familiar e sócio-cultural.

Na demonstração deste, a despromover, desígnio (usual e manipulador pró-tirano), estão:

- As práticas relacionais e educativas referentes às lideranças centradas na hierarquia sócio-familiar (treino de subjugação);

- A tendência ao cumprimento de um programa de vida impositivo e pré-existente (auto-desinvestimento, fatalismo e dependência);

- O recurso conveniente à opinião como certeza educativa (invalidação de alternativas); a sujeição às matrizes de valores dominantes (acriticismo);

- A exigência da aceitação passiva de normas (conformismo e adesão acéfala);

- A função de condicionamento como estratégia educativa e relacional (despersonalização do sujeito);

- A segregação da autonomização;

- A inibição da implicação e da estimulação do decisório;

- A castração da responsabilidade e independência;

- A intoxicação da espontaneidade…!

 

    O Pai e a Mãe; o Pai ou a Mãe; os Pais ou as Mães:

Contrariamente ao cenário anterior, neste registo de relacionamento, são debitadas vivências de gratificação onde a incidência recai sobre a criança, por si, com extermínio das caracterizações de conveniência e das crenças das ditaduras das hierarquias sócio-familiares.

Salienta-se, como substracto referencial à mudança, a revisão e renovação de enraizados e acríticos constructos sócio-histórico-culturais, assim como a responsabilização para a pertença e para a integridade ambiental.

São sistemas familiares e culturais promotores de salutar desenvolvimento, onde a matriz da relação entre a criança e o meio cuidador, estão centrados:

- Na qualificação da estimulação afectiva;

- No recurso à naturalidade do desenvolvimento e da interacção;

- Na disponibilidade para a segurança e protecção;

- Nas acessibilidades para a relação em direito e em justiça;

- Na democratização de formatos comunicacionais e de socialização;

- Na confiança ambiental;

- Na implicação harmoniosa, lúdica e integrada da criança no próprio desenvolvimento;

- Na facilitação gradual da construção da noção do outro como parceiro nutritivo;

- Na conjugação e adequação de expectativas;

- Nos procedimentos de participação e de elaboração;

- Na operatividade assertiva, livre e equitativa;

- Na facilitação de experiências de variedade, através do aperfeiçoamento de modelos avaliativos;

- No exercício da função gregária; 

- No treino de alternância com posturas hipotéticas…!

 

    Os Outros:

Este enquadramento espelha as intenções e os desígnios de outrem (de cidadania, profissionais e de institucionalismos de rigor) no panorama (integrado e sustentado em apriorismos de validade) promotor de saúde ambiental, comunitária, grupal, familiar e individual.

A materialização das intenções de maturação dos sistemas (promoção de saúde e prevenção de disfuncionalidades e de patologias) incluem cenários laborais centrados no sujeito, nos manifestos grupais e nos de realidade comunitária.

No que concerne à institucionalidade, esta deve favorecer a possibilidade de se manter actualizado o real cenário das necessidades comunitárias, pela leitura epidemiológica de rigor e, consequentemente, pela construção de programas de benefício comunitário, com fomentação dos próprios recursos das comunidades.

Dentro das práticas de intervenção comunitária, os meios de excelência, são os que consideram a implicação da comunidade como:

- Protagonista;

- Actuante;

- Pensante;

- Crítica;

- Coesa;

- Articulada;

- Influente;

- Capaz de ajustes em auto-regulação e auto-determinação, no sentido dos poderes da coerência da justiça nas equidades e nas liberdades…!

 

  A ditadura (mesmo na sua travestida e corrosiva forma de auto-indulgência) encobre-se com a propaganda e o aplauso.

    Evite-se ou, preferencialmente, extermine-se…!

 

_________________________

(*) Texto revisto e modificado.

A versão inicial foi divulgada em 7 de Abril de 2005, no Jornal Diário do Minho, por via das comemorações do Dia Mundial da Saúde, cujo lema foi: “Planear o futuro, nascer em segurança, crescer saudável”.

 

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